Telescope Lens #especial – Memórias do Glastonbury I

19 fevereiro, 2011

O Telescope Lens faz uma pausa na tradução dos e-zines para prestar homenagem a um dos temas do momento entre os fãs do Coldplay. As lentes do projeto enfocam agora as memórias de outras participações da banda no Glastonbury. Esse especial terá duas partes. Hoje, publicaremos dois depoimentos, um de Michael Eavis, idealizador e realizador do festival sobre Chris Martin e outro na via contrária (mas complementar). Amanhã, publicaremos uma matéria da NME de 2002 (um dos anos em que o Coldplay participou do Glastonbury), que traz uma entrevista com Chris Martin.

Michael Eavis sobre Chris Martin

Quando eu costumava ordenhar as vacas eu mesmo, eu tinha um rádio à válvula Marconi na casa de ordenha. Foi nesse rádio que ouvi pela primeira vez Marc Bolan, Bowie, The Smiths e Primal Scream, e os chamei para tocar no festival.

Quando eu parei de ordenhar, 40 anos depois, eu comprei um rádio Roberts para a cozinha da fazenda. O som dele não era tão nítido assim, mas eu ainda me lembro da manhã quando eu desci para a cozinha e ouvi Yellow, do Coldplay, pela primeira vez. Tudo o que eu conseguia pensar é que era um som tão bonito e edificante.

A voz de Chris Martin está tão inspiradora nessa música. Era o começo do milênio e acho que todos nós queríamos nos sentir um pouco dessa forma, não é? – “Look at the stars, look how they shine for you” – verso brilhante.

Isso foi no começo de 2000, mas eu só os conheci no final daquele ano, quando eles vieram me ajudar durante um período de crise. Fazemos a Pilton Fete todo ano [veja nota na timeline do Coldplay.com / link alternativo] – para agradecer à cidade por terem nos agüentado. Tínhamos chamado o Strokes, mas eles tiveram de cancelar no último minuto.

A Emily, minha filha, disse: “Por que você não liga para o Chris?”. Ela tinha o número dele. Ela simplesmente discou o número e passou o telefone para mim. Ele estava em Paris, mas concordou em pegar um vôo para Bristol. Eu fui buscar a banda em um dos tratores da fazenda. Eu sempre me lembro da mulher da segurança do aeroporto dizendo que eu não poda estacionar um trator do lado de fora das portas giratórias da área de desembarque. Foi na viagem de volta para Pilton que eu disse: “Vocês tocariam no festival como atração principal da sexta-feira do festival do ano que vem?”.

O Chris ficou encantado e nós deixamos tudo arranjado. O empresário deles ficou um pouco preocupado porque eles estavam trabalhando no A Rush Of Blood To The Head. Mas o Chris foi completamente fiel às suas palavras. O show foi extraordinário. Às vezes você tem um pressentimento: “Essa vai ser uma das maiores bandas de todos os tempos.” Eu tive um desses pressentimentos naquela sexta à noite.

O Chris tem integridade, consciência e ele é engraçado e inteligente. Isso é uma combinação e tanto. Não é o meu dever fazer comentários sobre o estilo de vida e sobre as crenças das bandas que chamamos para o festival, mas há bandas que vêm e fazem um show incrível e intenso, mas nada além disso. É reconfortante encontrar um astro do rock e pensar: “Esse aqui tem um cérebro”. Ele foi para Sherborne, uma escola local, e quando eu converso com ele dá para notar sem dúvida os seus vínculos com o sudoeste.

Eu acho que é difícil para alguém ser tão famoso e, ao mesmo tempo, manter a noção de si mesmo como pessoa. Depois da última vez que eles tocaram aqui, ele voltou para a fazenda e fizemos uma festinha. O Chris tentou domar o piano da fazenda. Ele tocou até as 4 da manhã e foi só depois que ele reclamou: “Uma afinadinha iria bem nesse piano”. Eu admiro uma estrela do rock que está disposta a batalhar contra um pedaço de sucata velha.

Eu admiro um homem que está disposto a correr um risco. Nós os vimos novamente quando o terceiro álbum deles, o X&Y, estava para ser lançado. A EMI publicou um alerta sobre a queda de seus lucros decorrente em parte do atraso do álbum e Chris disse: “Acionistas são malignos”. Isso me lembrou do Isambard Kingdom Brunel na construção da ferrovia Great Western entre Paddington e Bristol, no século 19. Era uma questão de amor ao projeto, mas os financiadores o obrigaram a terminá-la fosse como fosse. O Chris enfrentou muitos problemas desse tipo nessa década. Ele está tentando manter alguns valores humanos em um mundo de cifras e centavos.

Acho que você pode dizer muito sobre alguém pela sua reação ao meu queijo. Esses astros do rock podem comprar qualquer coisa, então eu gosto de presenteá-los com um queijo como agradecimento. Um queijo caseiro. Esse queijo é parte da fazenda e do que estamos tentando fazer aqui. Algumas pessoas não compreendem esse gesto. Mas o Chris aprecia o meu queijo.

Fonte: Revista Q Magazine (janeiro de 2010), em que Chris é elencado entre os artistas do século. Cópias digitalizadas da revista podem ser encontradas aqui.

Chris Martin sobre Michael Eavis

Eu estudei em um internato pertinho da fazenda de Michael Eavis, o cenário bucólico do Festival Glastonbury de Artes Contemporâneas, ou Glasto. É o equivalente a viver ao lado de Yankee Stadium e dizer: “Um dia, quando eu crescer, serei eu lá dentro”. Durante três dias a cada verão, Michael e sua filha Emily desistem de suas vidas como os produtores de leite e constroem uma cidade puramente em torno da música. Qualquer um que já pegou uma guitarra já sonhou em tocar no Glastonbury. É a maior catedral do rock de todo o mundo.

Todo mundo se pergunta por que este homem e este festival são diferentes. Em primeiro lugar, o Glastonbury está enraizado na história antiga; diz a lenda que o Rei Artur foi sepultado nas proximidades. E quando o festival começa, 150.000 pessoas irrompem na fazenda para formar uma metrópole muito feliz.

Mas Michael, 73, é o melhor quando o assunto é detectar o espírito da época [zeitgeist]. Você vai se perguntar: Quem é esse tal de Kings of Leon e o que eles estão fazendo no palco principal? Inevitavelmente, seis meses depois, o Kings of Leon é o que há de melhor na música.

Michael é uma das pessoas a quem devo a minha vida e a minha carreira. Todo ano ele faz uma festa de agradecimento para os moradores das redondezas de onde ocorre o festival. Ele pediu para o Coldplay tocar um pouco e foi buscar a gente no aeroporto. Era como ser apresentado a um tio simpático. Estávamos sentados na parte traseira de trator, que cheirava a queijo e gado, quando ele disse””Vocês não gostariam de ser atração principal no ano que vem?”. Nós engasgamos com as nossas bebidas! Esse continua sendo o maior episódio na história da banda. Tudo mudou desde então.

Nós já tocamos em outros festivais, mas o Glastonbury é o único que parece – e é – um evento familiar. É também o único em que você ganha queijo caseiro como forma de agradecimento.

Fonte: Time (2009), em que Eavis é listado entre as pessoas mais influentes do mundo

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