Interessante entrevista com Brian Eno, respeitado músico que trabalhou na produção do Viva La Vida e que está trabalhando atualmente no quinto álbum do Coldplay. Eno enfoca suas considerações acerca do conceito de criatividade e fala também de um Coldplay mais independente no estúdio.
Brian Eno realmente não precisa de apresentação. Sem dúvida, uma das figuras mais influentes na música moderna, Eno ainda está, há 40 anos, desbravando novos caminhos em sua ilustre carreira. Ele não tem nenhum interesse em conversar sobre Roxy Music, David Bowie, U2 ou sobre o seu próprio passado. E ele tem razão, considerando que os últimos anos têm sido os mais produtivos: ele revitalizou a técnicas de composição e gravação do Coldplay, renovou uma frutífera parceria com David Byrne e gravou um novo álbum pela Warp Records com dois jovens “coroinhas” cujas obras só podem ser descritas como “eno-ísticas”. Em janeiro passado, Eno visitou Calgary e Vancouver para, entre outras coisas, dar uma palestra sobre criatividade. Ele tem um ponto de vista intenso, bem marcado e altamente auto-consciente acerca do processo criativo. É por isso que a conversa a seguir mergulha fundo na mente de um dos grandes pensadores da música para tentar chegar à raiz do porquê ele permaneceu tanto tempo e como seus projetos atuais o mantém interessado em música nova.
Você vai dar uma palestra sobre criatividade. Esse é um tema realmente amplo para as pessoas comuns. Qual é o seu ponto de vista sobre o assunto?
Isso não é exatamente o que eu estou falando. Eu ainda não sei ao certo qual das duas palestras vou dar amanhã. Porque isso meio que depende de como eu me sentir no dia propriamente dito, do público e do que eu estiver pensando no momento.
Então, eu reformulo: de modo geral, essas palestras giram em torno de quê?
Um dos assuntos é um pouco sobre meu trabalho. Eu traço uma trajetória através da arte do século 20 e chego até mim. Isso não quer dizer que essa é a história existente, de forma alguma. Você pode traçar inúmeras outras histórias que terminam em muitos lugares diferentes. Mas eu tento olhar para as raízes de onde vêm minhas idéias e quais as ligações que eu vejo em relação ao que está acontecendo em outras formas de artes e em outras ciências também, a visão que os seres humanos têm de si mesmos nesse momento e como ela se diferencia da visão que pode ter ocorrido 100 ou 500 anos atrás. Essa é uma das histórias que eu posso contar. A outra é quando eu tento responder à pergunta de por que gostamos de arte. Por que estamos interessados em arte? Por que temos preferências estéticas? Por que devemos preferir algumas coisas a outras? Sobre o que é isso tudo? Então, essa é uma palestra um pouco mais teórica, mas pode ser que essa é que ocorra. Eu não sei.
Você mencionou as raízes da criatividade. Se você se definisse em poucas palavras, qual seria o resultado?
Bem, antes de mais nada, eu acho que se trata de um contínuo. Nós tendemos a pensar erroneamente que existem pessoas que têm criatividade e pessoas que não têm criatividade. Na verdade, porém, todo mundo é criativo a toda momento. Por exemplo, a frase que você acabou de dizer é uma frase que você nunca disse antes, tenho quase certeza. A frase que eu acabei de dizer é uma que eu nunca disse antes. As pessoas estão constantemente inventando e criando e fazendo coisas novas, mas nós dignificamos certas partes, certos aspectos mais do que outros. Então, eu acho que nós chamamos os artistas de “artistas” porque são pessoas que decidem passar suas vidas se especializando nisso, tentando chegar a algum lugar novo, por assim dizer. Mas, na verdade, tem um monte de gente que é criativa o tempo todo e que está fazendo todo tipo de coisas de forma criativa, e eu acho que isso é bastante simples. É isso que nos torna uma espécie tão bem-sucedida, e tão perigosa também. Nós podemos nos perguntar uma questão que nenhum outro animal aparentemente pode se perguntar: “E se? O que aconteceria se eu fizesse isso? Como seria se o mundo fosse assim? Como seria se mudássemos esse aspecto do mundo?”. Isso, claro, não é apenas a base de toda arte, como também a base de toda a ciência. O que aconteceria se fizéssemos isso? Essas perguntas “e se…” exigem, todas elas, imaginação. Elas mobilizam a sua imaginação na tentativa de respondê-las. E, como eu disse, todos nós fazemos isso o tempo todo, só que nós recompensamos algumas pessoas desproporcionalmente por isso.
Isso quer dizer que a criatividade, segundo essa definição, é uma questão de superar os obstáculos que o próprio indivíduo reconhece em si mesmo.
Isso. E eu acho que também é uma questão de reconhecer o que você está realmente fazendo e de encarar com seriedade as suas próprias idéias, porque uma das coisas a se notar é que muita gente tem idéias, mas não faz nada em relação a elas. Essas pessoas não têm fé em si mesmas, na verdade. Você descobre, muitas vezes – entre os alunos, se você estiver ensinando, entre músicos, se você ectiver produzindo – que o que você tem que fazer é reapresentar as idéias que as pessoas tiveram, mas com um pouco mais de brilho, para que ela sejam capazes de enxergar suas próprias idéias: “Olha, boa idéia, não é?”. As pessoas costumam relutar bastante antes de confiar em uma idéia que elas próprias tiveram. Um amigo meu – um amigo muito inteligente – me disse, quando a gente foi em uma exposição: “Eu não acho que isso realmente é arte” e eu disse: “Por quê?”, ao que ele respondeu: “Bom, porque eu mesmo tive uma idéia como essa uma vez”. E eu disse: “Qual é, então você acha que se você pensou isso, não poderia ser arte?”. Ele disse: “Sim. Acho que essa é exatamente a minha opinião”.
Você acabou de ter um disco novo lançado, em parceria com Leo Abrahams e Jon Hopkins, você tem respondido e talvez feito esse monte de perguntas sobre criatividade com bandas como o Coldplay. E você trabalhou com o David Byrne recentemente. São processos criativos muito diferentes. Juntamente com quem são feitas reflexões sobre essas questões e com o processo se torna uma experiência tão natural que você não se sente como se fosse um treinador?
Bem, suponho que são diferentes tipos de relacionamentos. Alguns são bastante baseados em amizade e outros, não. Eu sou amigo de muitas das pessoas com quem trabalho, mas, com algumas delas, a amizade não é, de forma alguma, um elemento importante na obra. Com as outras, ela de fato é. Esse é o primeiro aspecto a apontar. Não é uma questão de fazer amigos ou não. É uma questão de existir algum tipo de química interessante surgida do trabalho conjunto entre duas personalidades diferentes. Às vezes leva um tempo para descobrir a composição dessa químida, e quais são as quantidades certas de cada componente. Eu sempre digo às pessoas que o aço é apenas ferro com quatro por cento de carbono ou algo do tipo. A química dentro de um grupo de pessoas que trabalham juntas é, às vezes, muito, muito exótica. Você pode ter uma pessoa que parece ser marginal no processo mas, ocasionalmente, ela faz uma intervenção e o trabalho assume um rumo completamente diferente. Ou seja, a contribuição de pessoas assim não parece muito grande em termos de tempo, mas, na verdade, ela é muito importante. Quanto às colaborações de que participei, algumas deles – a com o David Byrne, por exemplo – foi empreendida principalmente por e-mail. Eu enviava para ele as coisas em que eu vinha trabalhando – melodias -, então ele escrevia uma letra em cima dessa melodia e enviava ela de volta para mim. Às vezes, depois dele me mandar a música de volta, eu pensava: “Essa música ficaria melhor se tivesse dois versos ao invés de um e essa parte não era tudo isso”. Assim, eu fazia as edições, dizendo “Tente isso”. Ou seja, a gente não passou quase nenhum tempo junto, numa mesma sala, fazendo música.
E, no entanto, algo como o Coldplay é o extremo oposto do espectro, em que você realmente tem de treiná-los muito de perto para fazer com que o potencial máximo se realize.
Sim, bem, esse foi o caso com o primeiro álbum que eu fiz com eles. Nesse [Eno está provavelmente se referindo ao quinto álbum], eu tenho um relacionamento um pouco mais fora do comum, que chamamos de “acordo portinhola-de-gato” [placa acoplada a portas para acesso de gatos de estimação].
E isso seria?
Tem uma portinhola de gato no estúdio dele e, ocasionalmente, eu me arrasto até lá, dou uma ouvida no que está acontecendo, faço algumas observações e me arrasto para fora novamente. Às vezes, eles perguntam: “Ei, você tem alguma hora na semana que vem para dar uma passadinha pela portinha de gato?”. É uma relação muito mais distante dessa vez. Eles já pegaram os macetes da última vez e eles meio que estão percorrendo o caminho sozinho dessa vez. Acho que é isso que acontece depois de você ter trabalhado com as pessoas por um certo tempo. Você começa a entender em que partes do processo uma pessoa será realmente útil e você sabe o que quer delas.
Certo, então, essencialmente, tem menos conversa rolando.
Isso. Eu acho que você não quer que toda mundo n0 mesmo lugar o tempo todo. Não é muito produtivo. Se todo mundo está junto o tempo todo, provavelmente 60 por cento das pessoas não estão fazendo nada; esse 60 por cento está sentado lendo, procurando coisa no google ou pensando em nada. É muito melhor ter menos pessoas na mesma sala, todas atentas do que todo mundo reunido [sem fazer nada produtivo]. Eu sempre acho que, quando tem alguém lendo revista no estúdio, é como se houvesse algum vazamento: tem alguma coisa escapando por aquele buraco.
Uma perda de foco. Como você conheceu Leo Abrahams e Jon Hopkins, e como funciona esse relacionamento?
Eu estava em uma loja de instrumentos musicais em segunda mão em Nottinghill Gate. Este é um lugar que vende um monte de guitarras e de amplificadores e, por isso, é geralmente um pesadelo para entrar porque tem sempre guitarristas jovens fazendo beicinho ou gritando. Uma vez eu fui e tinha um jovem guitarrista, que não estava fazendo beicinho, mas que estabva tocando muito delicamente. Então, eu pegueio telefone dele e liguei para ele. É assim que o conheci. Uma vez, eu perguntei se ele conhecia algum tecladista. Eu precisava de alguém para tentar uma coisa, e ele disse “Sim, um amigo meu, um colega de escola, o Jon”. Trabalho com os dois desde então. [Essa história também é comentada nesta entrevista.]
Isso é bem aleatório.
Bem, se não tivesse valido a pena das primeiras vezes, eu teria ido procurar outra pessoa. Há uma porção de pessoas com que eu tive um contato rápido de trabalho, mas que não persistiu. Mas era muito revigorante trabalhar com eles.
Dá para ouvir isso no álbum, também. Eu gostaria de perguntar se os dois artistas podem ser definidos, de modo geral, como pessoas que foram direta ou indiretamente influenciados pelo seu trabalho no passado. Além disso, você diria que o Coldplay não foi influenciado só na superfície, não é? Mas o David Byrne é mais contemporâneo. É diferente trabalhar com pessoas que têm essa sensação de intimidação ou talvez respeito que entra entra em jogo quando você está no estúdio tentando colaborar de igual para igual?
O respeito diminui muito rapidamente. Sério, isso nunca é um problema. Eu não sou um músico intimidador. Eu nem consigo tocar nada. Eu nem acho que eu sou uma pessoa muito intimidante, então as pessoas ficam tranqüilas rapidamente. E mais: eu sou muito encorajador. O que eu deveria dizer, na verdade, é que eu sou muito opinativo. Se eu ouvir algo que eu gosto, eu dou o meu apoio abertamente e encorajo isso, mas, se eu ouvir alguma coisa que eu acho que não é muito interessante, eu digo imediatamente: “Não estou interessado nisso”. Eu acho que as pessoas sabem quais são as minhas intenções. Eu deixo isso bem claro desde cedo. Isso ou é ótimo ou é um lixo, e eu não consigo discernir muitas nuances entre esses dois pólos.
Nos últimos anos, parece que você está indo muito bem com as colaborações. Você acha que – já que nós estávamos falando sobre métodos de superar impasses criativos – colaboração é um desses métodos?
Bem, isso ajuda muito porque as pessoas nunca fazem o que você espera que elas façam, então isso te lança em um lugar diferente. De repente, você se encontra tendo que fazer contorcionismos para encontrar soluções ou tentando dar o seu melhor em alguma coisa que não entende muito bem Isso tudo é bom e saudável. Isso te desestabiliza. E eu acho que o outro elemento é, se você está trabalhando com outra pessoa, um ritmo diferente de trabalho é criado. Você sente que tem que dar uma idéia nova. Você não pode simplesmente ficar fazendo nada, estão esperando alguma coisa de você. Eles estão esperando algum tipo de sinal. Então eu acho que isso faz você correr mais riscos,. Isso te encoraja a tentar algo para manter a bola em jogo.
Fonte: Exclaim.ca | Agradecimentos: Coldplaying.com